O estilo literário no cordel

Para abrir os trabalhos, repasso uma antiga observação que fiz a respeito do mundo do cordel: — Também constatei que o mundo do cordel reflete o mundo da literatura oficial: tem seus medalhões (que se julgam acima de tudo), suas vaidades, suas traições, suas inseguranças, suas agressões, suas fofocas. Mas foi o mundo que escolhi e meu objetivo é torná-lo melhor, amando-o e tentando compreendê-lo.

Digo porque o meu texto sobre o romance de Felipe Junior promoveu uma boa discussão acerca da qualidade dos folhetos produzidos hoje em dia. Tanto Alexandre Morais, poeta pernambucano, quanto Aninha Ferraz, coordenadora da Editora Coqueiro, do Recife, corroboraram minhas observações a respeito do sumiço do romance de cordel, enquanto os cordéis de piada (não se confunda com o cordel de gracejo) transformam-se em febre entre os "leitores" cordeliais.

Mas sigamos nossa antiga reflexão. Quando Manoel D'Almeida Filho assumiu a coordenação e a seleção de textos para a Prelúdio, depois Luzeiro, empregou em larga escala, exigente que era, a leitura crítica dos textos, fazendo intervenções, com ou sem a anuência dos poetas. Esses textos revisados e, a maioria deles, melhorados tiveram sempre a maior aceitação. Há na Luzeiro todo um acervo de cartas e textos cordelísticos nos quais D'Almeida discute com os autores mostrando-lhes as impropriedades e possibilidades de melhorar o texto poético. Muitos poetas não aceitavam, mas a publicação só saía se o revisor (D'Almeida) desse o aval. E assim a Prelúdio, depois Luzeiro, consolidou-se no mercado transformando-se na grande casa publicadora de cordéis do país, alcançando respeito e criando em todos os poetas "do norte" o desejo de ver seus livretos publicados por ela.

Tentamos seguir a orientação de Manoel D'Almeida quando por lá chegamos. Mas a resistência de alguns poetas beiraram a agressão. Sustentamos o taco e todos os textos passaram a ter essa interlocução com os autores, visando a lapidação, a busca pela excelência, o texto ideal. Nem sempre acertamos, mas caminhamos, assumindo todos os nossos percalços, como deve ser, sempre.

Recentemente passei a ouvir de poetas que não gostariam que seus textos fossem revisados porque mudariam o estilo individual de cada um. Claro que sabemos de onde parte esse tipo de observação. E emendo: triste e coitado do poeta, ou qualquer outro escritor, que ache que seus problemas gramaticais, suas redundâncias, suas fraquezas na escrita, suas moletas na emenda dos versos, suas repetições de rima, suas inversões sintáticas, sua falta de leitura formam o seu estilo. E quem os orientou a isso, digo, sem medo de retaliação, é no, mínimo, um mau caráter.

Toda a história da literatura trata só de uma coisa: da reescritura do texto. O poeta que escreve um texto à noite e o publica, sem revisar ou submeter à apreciação de um terceiro, está escrevendo sobre sua sepultura. Nenhuma leitura crítica vai interferir no estilo de ninguém. Primeiro, poetas, precisamos saber o que é Estilo. Quando se trata de literatura não se fala em estilo de Língua, mas de Linguagem. E esse estilo é aquele no qual o poeta, senhor da Língua, manipula de tal maneira as possibilidades dela que cria uma Linguagem toda sua, especial, com o seu DNA. Portanto submeter um texto à consciência crítica de outrem é aprender a escrever bem.

Vejamos o caso de Maria das Neves Pimentel, filha de Francisco das Chagas Batista e mãe de Altimar Pimentel. A certa altura de sua entrevista a Maristela Barbosa de Mendonça ela fala se referindo à escritura de O Violino do Diabo: "... eu compreendi que esse verso não estava muito claro, não estava muito bom. O verso diz assim:

A virtude é um lago
de águas bem cristalinas,
um espelho de diamante,
uma joia rara e fina,
onde o vício não pode
lançar a mão assassina!

Então eu fiz esse outro:

Honestidade é virtude
dada pela mão divina
uma fonte de água pura
transparente e cristalina
onde o vício não pode
lançar a mão assassina."

É assim que funciona. O poeta tem que ter a coragem de modificar seus versos para melhorá-los. Vejamos o caso de Leandro Gomes de Barros: muita gente acredita que o pai do cordel escrevia seus textos à noite e os publicava no outro dia. Muitas vezes foi assim pela urgência do tema e do estômago, mas em todas as reedições de seus textos aconteciam consideráveis transformações. Aqueles que tiverem tempo pesquisem sobre isso. Na Casa de Rui Barbosa podemos encontrar folhetos de Leandro completamente anotados por sua filha Rachel Aleixo, servindo de roteiro para uma próxima edição. Nem por isso o estilo de Leandro avacalhou-se. Pelo contrário.

Todos nós sabemos que um folheto de 31 estrofes das quais 15 rimam em ÃO, ou é fruto de um gênio ou de um medíocre. Gênios existem poucos, logo nos assenhoramos disso. Mas se o medíocre acredita que o seu estilo, ou seja, a maneira que ele encontra de trabalhar a linguagem de seu poema, no que diz respeito à rima, é colocando metade de seu texto na rima mais banal do Português, aí a coisa é mais complicada. É doentio. O mesmo se aplica às rimas no Infinitivo do verbo: cordéis que rimam o tempo todo em AR, ER ou IR. Olha, se esse é o caso, querido poeta, sua condição é complicada. Reparem o caso de Leandro (modelo de verdade) em Bento, O Milagroso de Beberibe. Não há nenhuma rima em ÃO, apenas duas em IA e três no infinito. Posso dizer pela observação que Leandro estava no auge da maturidade poética, melhorando sua escrita. Vejam que rima arretada:

Na bolsa, no corpo, em tudo
Eu já sentia desfalque
Foi tocar n'água de Bento
Senti inteiro meu frack.
Apareceu-me bigode
E nasceu-me cavangnac.

Outro dia, sentamos Zé Walter Pires, poeta de Brumado, na Bahia, Rosário Pinto, do Museu do Folclore, do Rio de Janeiro, e eu, para uma leitura a três vozes da obra do mesmo Zé Walter, O Rapto de Pórcia, que estamos preparando para a Editora Luzeiro. Foi uma tarde de descobertas e discussões, de aproximação e consolidação da amizade. O próprio Zé e Rosário poderão dar o seu testemunho aqui.

Por isso e por muito mais é que vou repetir: — Você que está com esse discurso de que uma leitura crítica que aponta as impropriedades, imprecisões e outras aberrações do seu texto vai mexer com seu "estilo", caia na real. A figura que está colocando isso em sua cabeça só tem uma intenção: falar mal do seu texto depois da tragédia acontecida.

As fotografias que ilustram são de folhetos de Leandro anotados e revisados por Rachel Aleixo, sua filha.

Fonte: http://www.jornalggn.com.br/blog/aderaldo-luciano
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Sobre o Autor

Amo a cidade de Areia, suas belezas e sua gente. Carrego esta cidade no peito para que ninguém a destrua. Seu clima é frio e encantador, seu povo quietinho...